quinta-feira, 28 de junho de 2007

"O Guarani" - Capítulo XI - Epílogo


O Epílogo é, talvez, o mais forte e decisivo da narrativa de "O Guarani'. O cenário e a natureza resolvem o conflito para o autor em como finalizar um final adequado ao casal mais improvável do século XIX: uma branca, filha de fidalgo e um índio. Dá para imaginar essa dupla nas cidades grandes? Ainda hoje causaria espanto: uma "patricinha" namorando um índio. E estamos em pleno século XXI. Como Cazuza resolveria esse impasse? Como o livro era um folhetim, ele teria que desdobrar uma solução da cartola de mágico convincente o suficiente para agradar a gregos e troianos; um final que justificasse tanto a sua obra quanto a expectativa romântica das leitoras da época e, inclusive, aos costumes e à moral pretensamente vitorianas.

Resumindo: teria que ser um fim em que fossem abraçadas a idéia histórica da fusão de povos indígena e português, a esperança romântica das leitoras de um 'final feliz' e nada imoral como deixar uma moça branca e portuguesa viver com um índio no meio das matas. O amor deveria prevalecer, mas nunca o amor carnal, o amor sensual. O amor medievalesco, aquele feito de renúncia e honra e pudor, esse sim, é que deveria triunfar.

O capítulo inicia com a destruição descrita da casa de Dom Antônio de Mariz:

"Quando o sol, erguendo-se no horizonte, iluminou os campos, um montão de ruínas cobria as margens do Paquequer" [...] "Toda a noite o índio tinha remado sem descansar um momento; não ignorava que Dom Antônio de Mariz na sua terrível vingança havia exterminado a tribo dos Aimorés, mas desejava apartar-se do teatro da catástrofe, e aproximar-se dos seus campos nativos. Não era o sentimento da pátria, sempre tão poderoso no coração do homem; não era o desejo de ver sua cabana reclinada à beira do rio e abraçar sua mãe e seus irmãos, que dominava sua alma nesse momento e lhe dava esse ardor. Era sim a idéia de que ia salvar sua senhora e cumprir o juramento que tinha feito ao velho fidalgo; era o sentimento de orgulho que se apoderava dele. pensando que bastava a sua coragem e a sua força para vencer todos os obstáculos, e realizar a missão de que se havia encarregado."

E haja sentimentalão de cavaleiro medieval no nosso índio! Honra, intrepidez, coragem, orgulho, cuidado extremado com sua senhora, uma donzela adormecida para que não presenciasse a tragédia que se abatera sobre a sua família. Está aqui, como no restante da obra, o índio apenas como um cavaleiro medieval despido da armadura, mas com os mesmos atributos do segundo. É o medievalismo, característica que supervaloriza as qualidades morais da Idade Média, propagadas pelos protagonistas das Novelas de Cavalaria. o nosso nobre índio é zelo total para com aquela que ele jurou amar e defender acima de tudo:

"Peri tomou a canoa nos seus braços, como se fora um berço mimoso, e deitou-a sobre a relva que cobria a margem do rio; depois sentou-se ao seu lado, e com os olhos fitos em Cecília, esperou que ela saísse desse sono prolongado que começava a inquietá-lo. [...] A mãe, a mais extremosa não se desvelaria tanto por seu filho, como esse amigo dedicado por sua senhora; uma réstia de sol que, enfiando-se pelas folhas, vinha brincar no rosto da menina, um passarinho que cantava sobre um ramo do arbusto, um inseto que saltava na relva, tudo ele afastava para não pertubar o seu repouso."

A dedicação de Peri só é comparável com sua capacidade de nunca ficar cansado: além de ter passado a noite toda remando sem parar - o que cansa - ainda tem forças para retirar uma canoa com uma mulher de dentro do rio e carregá-la, ainda que seja por alguns poucos metros, e permanecer em vigília. Que homem não gostaria de ser esse herói incansável? Mas a verdade tem que ser revelada. Cecília adivinha pelo silêncio de Peri e pela mudança de cenário. (Já se vê que ela não é tão burrinha assim; soube somar dois e dois. ;P )

"- Meu pai!... meu pai!... - exclamou soluçando. O selvagem deixou cair a cabeça sobre o peito e escondeu o rosto nas mãos. - Morto!.. Minha mãe também morta!... Todos mortos! [...] Cecília ergueu a cabeça altiva. - Por que não me deixaste morrer com os meus?... exclamou ela numa exaltação febril. Pedi-te-eu que me salvasses? Precisava de teus serviços?... [...] Peri estremeceu. - Escuta, senhora... balbuciou ele em um tom submisso. A menina lançou-lhe um olhar tão imperioso, tão soberano, que o índio emudeceu, e voltando o rosto escondeu as lágrimas que lhe molhavam as faces."

Quanta força, vigor e apego à família demonstra essa garota! Além da superioridade que todo seu ser respira. O índio, submisso, se limita a calar-se e chorar às escondidas. Mais uma vez uma demonstração da soberba da raça branca? ou apenas a dor de uma filha? a boa filha que preferiria ter ficado com os seus? Talvez todas essas possibilidades residam no coração de Cecília nesse momento pungente. Mais uma vez, Peri demonstra sua vassalagem amorosa: respeita a dor de sua senhora e chora... pela ingratidão sofrida ou pelo sofrimento de sua Ceci? mais provável e coerentemente, a segunda opção. Mas Ceci é a heroína e, passada a dor, ela tenta montar o quebra-cabeças do que acontecera e se volta aos seu herói num cálido pedido de desculpas.

"[...] Cecília conhecia que fora injusta para om seu amigo que tinha talvez feito impossíveis por ela; e a não ser o receio instintivo que se apoderara involuntariamente de sua alma, já o teria chamado para pedir-lhe perdão daquelas palavras duras e cruéis. A menina ergueu os olhos tímidos e encontrou o olhar triste e súplice de Peri; não pôde resistir; esqueceu os seus receios, e um tênue sorriso fugiu-lhe pelos lábios. - Peri!... O índio estremeceu, mas desta vez de alegria e de contentamento; veio cair aos pés de sua senhora, que ele encontrava de novo boa como sempre tinha sido. - Perdoa a Peri, senhora! - És tu que me deves perdoar, porque te fiz sofrer; não é verdade? Mas bem sabes!... Não podia abandonar meu pobre pai! - Foi ele que mandou a Peri que te salvasse! disse o índio. - Como?... exclamou a menina. Conta-me, meu amigo. O índio fez a narração da cena da noite antecedente desde que Cecília tinha adormecido até o momento em que a casa saltara om a explosão, restando dela apenas um montão de ruínas. Contou que tinha preparado tudo para que D. Antônio de Mariz fugisse, salvando Cecília; mas que o fidalgo recusara, dizendo que a sua lealdade e a sua honra mandavam que morresse no seu posto. - Meu nobre pai! murmurou a meina enxugando as lágrima. Houve um instante de silêncio, depois do qual Peri oncluiu a sua narração, e referiu como D. Antônio de Mariz o havia batizado, e lhe havia confiado a salvação de sua filha. - Tu és cristão, Peri?.. exclamou a menina, cujos olhos brilharam com uma alegria inefável. - Sim, teu pai disse: "Peri, tu és cristão; dou-te o meu nome!" "

Interessante perceber que Cecília sofre de um discreto (?) complexo de Electra; ela é muito mais apegada ao pai que à mãe. Na realidade, a mãe de Cecília meio que 'desaparece' no meio da narrativa do livro. aliás, como é mesmo o nome dela? O perdão é dado de ambas as partes de uma forma muito fluida, apesar de sentimental e a ele sucede a explicação do ocorrido. Dois momentos são marcantes para a moça: a demonstração explícita de honra do pai e a recente 'cristandade' de Peri. Detalhe: se Peri recebeu o nome de Dom Mariz, então agora ele seria o irmão adotivo de Cecília? Não podemos esquecer que o pai só permitira ao índio levar a sua única filha após tê-lo tornado 'cristão'... sem ser padre. Qual a real intenção? salvaguardar a honra de sua filha entregando-a aos cuidados de um irmão adotivo? obrigá-lo a manter a palavra em levar Cecília para a casa da tia dela, através de um juramento cristão, de valor mais efetivo para o fidalgo? Eles passam o dia nessa margem (na qual nenhum animal foi beber água, já que Peri e Ceci estavam ali... :/ ), Ceci se alimenta de frutas 9e o índio, pelo visto, de ar). Ao cair da tarde eles retomam o caminho aquático, de onde Peri pretende levar Cecília, conforme o prometido, para a casa da irmã de D. Antônio de Mariz. Finalmente, nosso herói posiciona o barco no meio do rio, bem distante das margtens e, acreditando que Cecília dormia, apresenta sinais de cansaço e se rende ao sono. (ufa! ele é humano, afinal de contas!)

"[...] Cecília sentindo a canoa imóvel despertou das suas recordações; sentou-se, e debruçando-se um pouco viu que seu amigo dormia, e acusou-se por não ter há mais tempo exigido dele esse instante de repouso. [...] Contemplando essa cabeça [de Peri] adormecida, a menina admirou-se da beleza inculta dos traços, da correção das linhas do perfil altivo, da expressão de força e inteligência que animava aquele busto selvagem moldado pela natureza. Como é que até então ela não tinha percebido naquele aspecto senão um rosto amigo? Como seus olhos tinham passado sem ver sobre essas feições talhadas com tanta energia? É que a revelação física que acabava de iluminar o seu olhar, não era senão o resultado dessa outra revelação moral que esclarecera o seu espírito; dantes via com os olhos do corpo, agora via com os olhos da alma."

Ah!... nada como um ato heróico para tornar um homem em um deus aos olhos da mulher agraciada pelo ato heróico! Alencar vai além, reforça a idéia de que ele é belo em seu habitat, em outros lugares, como a cidade, ele estaria deslocado. Cecília reconhece isso. Mas, ainda assim, o admira. Como uma mulher admira um homem bonito. Está quase amanhecendo, Peri desperta e ao ver Cecília acordada, envergonha-se. É hora de rezar, Cecília pede que Peri, agora cristão, repita o que ela disser. Peri vai em busca de mais frutas para ela. Mas, antes de se afastar, circula o lugar em que Cecília se encontra de pequenas fogueiras aromáticas para que nenhum bicho se aproxime, nem mesmo insetos ("Peri não sofreriaq que uma vespa e uma mosca sequer ofendesse a cútis de sua senhora, e sugasse uma gota desse sangue precioso;"). Cecília fica só e começa a divagar sobre seu amigo, seu irmão, Peri.

"Qual é o seio de dezesseis anos que nã abriga uma dessas ilusões encantadoras, nascidas com o fogo dos primeiros raios de amor? [...] Cecília amava; a gentil e inocente menina prourava iludir-se a si mesma, atribuindo o sentimento que enchia sua alma a uma afeição fraternal, e ocultando, sob o doce nome de irmão, um outro mais doce que titilava nos seus lábios, mas que seus lábios não ousavam pronunciar."

Finalmente! Cecília ama Peri. Bem, Peri retorna de sua busca. Traz inclusive suco de ananás! ou seja, de abacaxi. Cecília ainda chora e Peri afirma que permanecerá com ela na "taba dos brancos", mesmo que isso o mate. Ele sabe que sofrerá preconceitos. Ceci se afasta, pensa e depois pede que o índio lhe arranje algodão e pele, a fim de que ela possa fiar um vestido para si mesma e sapatos para calçar. A canoa? ela a soltara. Decidira ficar com Peri na selva. Ele, intimamente decide cumprir a promessa feita ao pai de Ceci. Precisa, entretanto, arranjar um lugar seguro para que ela possa adormecer sem receio. Encontra a canoa presa por plantas aquáticas. Preparam-se para a noite, mas o índio observa o horizonte e pressente a catástrofe iminente. Entre correr riscos maiores em terra e um provável na água, ele escolhe a última alternativa. Cecília dorme, Peri ontinua atento. Seu temor é confirmado: uma enchente se aproxima. Ele torna à margem, de onde se destaca uma palmeira.

"Tocando a margem, Peri saltou em terra, tomou Cecília meio adormecida nos seus braços, e ia entranhar-se pela mata virgem que se elevava diante dele. Nesse momento o rio arquejou como um gigante estorcendo-se em convulsões, e deitou-se de novo no seu leito, soltando um gemido profundo e cavernoso. [...] Peri tomou a resolução pronta que exigia a iminência do perigo; em vez de ganhar a mata, suspendeu-se a um dos cipós, e, galgando o cimo da palmeira, aí abrigou-se com Cecília. A menina, despertada violentamente e procurando conhecer o que se passava, interrogou seu amigo. - A água! - ele respondeu apontando para o horizonte."

Por mais forte que seja, esse ato por si só exigiu uns 12 pontos de destreza na ficha do personagem Peri (sendo que o máximo é 6). Porque suspender-se num cipó e ir para cima de uma palmeira já é difícil, imagine com uma dama adormecida nos braços, vestida com as roupas de antigamente! Continuemos a leitura:

"A torrente passou, rápida, veloz, vencendo na carreira o tapir das selvas ou a ema do deserto; seu dorso enorme se estorcia e enrolava pelos troncos diluvianos das grandes árvores, que estremeciam com o embate hercúleo. [...] As árvores estalavam; arrancadas do seio da terra ou partidas pelo tronco, prostravam-se vencidas sobre o gigante, que, carregando-as ao ombro, precipitava para o oceano. [...] Cecília, apoiada ao ombro do seu amigo, assistia horrorizada a esse espetáculo pavoroso; Peri sentia o seu corpinho estremecer; mas os lábios da menina não soltaram uma só queixa, um só grito de susto." A devastação é belíssima, descrita com força nas imagens e abusando da linguagem conotativa. A prosopopéia da enchente ser um gigante carregando árvores arrancadas da terra ao ombro, é fenomenal."

Mas.... se eles se encontravam à margem, por que simplesmente "assistiam" a enchente e a palmeira na qual eles se encontravam abrigados não fora arrastada pelo "gigante" como as outras? que sorte a deles, não?... Peri tem uma idéia: fazer como o índio Tamandaré, que escapara do dilúvio indígena sobre o olho de uma palmeira, segundo a lenda. Ao terminar de narrar a lenda, em tom grandiloqüente, a água chega às fohas da palmeira onde eles se encontram, chegando ammolhar a ponta do roupão de Cecília, o que faz com que ela se assuste. Peri resolve tomar uma atitude drástica: arrancar do solo, com a força de seus braços, a árvore e usá-la como uma canoa.

"Três vezes os seus músculos de aço, estorcendo-se, inclinaram a haste robusta; e três vezes o seu corpo vergou, cedendo a retração violenta da árvore, que voltava ao lugar que a natureza lhe havia marcado. Luta terrível, espantosa, louca, esvairada: luta da vida contra a matéria; luta do homem contra a terra; luta da força contra a imobilidade. Houve um momento de repouso em que o homem, concentrando todo o seu poder, estorceu-se de novo contra a árvore; o ímpeto foi terrível; e pareceu que o corpo ia despedaçar-se nesa distensão horrível. Ambos, árvore e homem, embalançaram-se no seio das águas; a haste oscilou; as raízes desprenderam-se da terra já minada profundamente pela torrente."

Certo. Esqueçamos as lições básicas da física, pois toda essa parte contraria-as! Que as imagens são fortes, apelativas e belíssimas, não resta dúvidas. Mas... como é que ele tentou três vezes DEBAIXO DA ÁGUA a arrancar uma árvore que já não o fora pela torrente que a tudo arrastava? Detalhe: trata-se de uma correnteza violentíssima! E, enquanto ele bancava o superhomem, como ficava Cecília sobre a árvore que era freneticamente balançada? Não é à toa que a pobre desmaia. Mas... se ela desmaiou, como é que ela permaneceu sobre o olho da palmeira? Questões realísticas à parte, voltemos à leitura. Tal como Tamandaré e sua esposa, o casal está à deriva. Ele, querendo salvar Cecília. Ela, já se resignando a morrerem e se reunirem aos familiares no céu... (agora ele é cristão, o céu pode abrir uma vaga para um índio.)

"Ela embebeu os olhos nos olhos de seu amigo, e lânguida reclinou a loura fronte. O hálito ardente de Peri bafejou-lhe a face. Fez-se no semblante da virgem um ninho de castos rubores e límpidos sorrisos: os lábios abriram como as asas púrpureas de um beijo soltando o vôo. A palmeira arrastada pela torrente impetuosa fugia.. E sumiu-se no horizonte."

Final perfeito. Há uma intenção de sensualidade: "hálito ardente", "rubores", "lábios abriram","beijo"... Dá a impressão de que, enfim!, os dois se beijaram. Aleluia! É, mas dá a IMPRESSÃO. Nada é certo nessa cena. As mentes mais tradicionais poderiam se sentir constrangidas, vá saber... E o final em aberto? cada leitor dá o final que quiser: você é moralista, eles se salvaram e Peri a entregou à tia dela. Romântico? ambos se salvaram e viveram felizes para sempre no meio da selva. Realista? ele se salvou, mas como ela era mais fraca, morreu. Trágico? Morreram. Todos.


As implicações históricas são bem transparentes: da fusão entre branco e índio, foi o primeiro que colonizou o outro e desse relacionamento quem saiu perdendo foi o índio. "Sumiu-se no horizonte..." talvez seja uma alusão à questão indígena. Já na época de Alencar o índio brasileiro era uma quase raridade, mesmo com a Amazônia inexplorada ainda. Que final teve a colonização brasileira? - é a pergunta mais profunda que se insinua das linhas bem escritas (apesar dos exageros e das varias licenças poéticas) do romancista, cronista, dramaturgo, poeta José Martiniano de Alencar.

Trechos do livro "O Guarani", de José de Alencar, Editora Ática

Um comentário:

Samuel disse...

Depois de ter analizado bem esse último capítulo, percebi que, apesar de o autor ter deixado o final em aberto, ele deixou algumas pistas que mostram como deveria ter continuado a história; a mais importante delas é quando Peri relata a lenda de Tamandaré, "Desceu com a sua companheira, e povoou a terra", indicando o futuro de ambos que haviam seguido os mesmos passos de Tamandaré; mais ao final Ceci diz: "Nós iremos lá, Peri! Tu viverás com tua irmã, sempre...!" indicando possivelmente um casamento cristao na mata.